quarta-feira, 8 de abril de 2009

O que deu errado em Watchmen, o filme?

Moore: "Medo do bicho-papão?"

É óbvio que a pergunta tem uma resposta automática: "O próprio fato de alguém se meter a fazer um filme de Watchmen". Mas vamos utilizar a tática oposta: considerando o filme, o que desandou?

Watchmen é uma das melhores HQs de todos os tempos. É certamente a melhor a envolver heróis fantasiados, seguida a certa distância pelo Dark Knight, de Frank Miller. Um dos motivos é a estrutura & o texto do inglês Alan Moore, melhores do que boa parte dos romances lançados daquela data (1985) em diante.

Moore diz em entrevistas que o objetivo era discutir questões de poder. De fato, ele opera o tempo todo dentro da alegoria fornecida por vigilantes encapuzados (mais o übermensch Dr. Manhattan), & o que significam moral & historicamente as interferências de pessoas com poder de modificar a realidade por suas decisões, como um modo de pensar sobre políticos, polícia, aparato legal, etc.

A obra é surpreendente, porque Moore é capaz de compor personagens psicologicamente complexos, escrever falas de grande poder perceptivo, ligar com proveito citações da cultura às ações de seus personagens, & sugerir ligações visuais imprevisíveis com aquilo que se diz no texto. Entre outros milhares de coisas que faz ao mesmo tempo.

É um enorme painel de um futuro-passado, alegorizado num esquema reductio ad absurdum. Utiliza a fantasia extrema de seus heróis para penetrar no monstro emblemático de sua época, & assim escreve ao mesmo tempo uma graphic novel que atende ao público habitué dos quadrinhos & a curiosos leitores de quaisquer outros gêneros.

E aí está o problema do filme: quase três horas não cobrem os doze volumes que depois se juntaram numa edição encadernada, enfeixando documentos & detalhando 40 anos de atividade, desde os Minutemen dos anos 1940 até os Watchmen fora-da-lei em meados dos 1980.

Ainda que cobrissem, a decisão de cortar partes dramáticas para tentar ganhar um público anestesiado pela maníaca expectativa de ação à moda de Matrix (1999) arruína muita coisa central para o funcionamento da história.

Rorschach punindo quem deve ser punido


Uma das partes arruinadas é a da história de Rorschach, o personagem que os fãs em geral mais apreciam. Walter Kovacs, com sua mãe prostituta, tem uma infância horripilante no fim dos anos 1940, fazendo parte daquele monte de gente que não era contemplada com o carro na garagem, eletrodomésticos, o papai de chapéu indo pro serviço & a mamãe fazendo bolo à tarde.

Num crescendo da experiência torpe da violência nas ruas, ele desenvolve uma casca grossa que aos poucos o transforma num psicótico muito peculiar: cria um senso moral de preto no branco, que engole o pequeno Waltar Kovacs na persona do vigilante violento & de voz rouca, Rorschach, que toma seu nome das pranchas usadas em testes psicológicos de livre associação, com figuras borradas: as mesmas figuras que deslizam por sua máscara sem rosto, que adquiriu & modelou trabalhando como cortador na indústia de tecidos, a partir de um vestido de uma cliente que desisitiu da encomenda.

Isso é o que sabemos, porque Rorschach conta ao psiquiatra que vai assisti-lo na prisão. O Dr. Malcolm Long, único personagem "gordo, saudável, de tendências liberais", humano quotidiano & tributável, cuja vida particular seguimos, é posto diante desse grande personagem psicótico, de conduta inabalável &, por comparação, percebemos o quanto a realidade perturbadora, vista só do ponto de vista que escolhe as mazelas, aos poucos modifica Long, que tentava penetrar na mente pouco arejada de Rorschach.

É uma parte importante, porque nos dá Rorschach (com porquê & como), & nos dá a fragilidade de uma verdade meramente sociável, acomodada em suas pequenas comodidades de classe média, que é a vida de Malcolm Long (assim como a vida da maioria dos leitores, as pessoas de bem que querem apenas ser felizes, não é mesmo?).

Mas isso desaparece do filme, que estendeu cenas de luta & fez de Long pouco mais do que uma citação de passagem, dando àquelas cenas de combate, além do mais, um cool factor que não existe no livro, onde a violência é feia, triste, desagradável.

Da mesma forma, a maior parte daquilo que fez do livro o que ele é, uma obra complexa & importante, diferente de todas as já escritas no gênero, é atenuado para uma versão de consumo mais fácil, ou é removido sem cerimônias do filme.

Dr. Manhattan, com o símbolo do hidrogênio na testa, que alude também ao doomsday clock.

Mas dizer isso, apenas, não é dizer tudo: há poucos mas bons momentos em que uma rara inspiração pôs Zack Snyder no caminho certo. A mais óbvia delas é o episódio do Dr. Manhattan, solitário em Marte.

Snyder, talvez lembrado das magníficas cenas de solidão geológica do filme Koyaanisqatsi (1982) acompanhadas da música espectral de Philip Glass, aplicou essa trilha sonora com impressionante inteligência ao episódio, um flashback do próprio personagem, que caminha na superfície de Marte após decidir deixar a Terra & a vida humana, demasiado incômoda & complicada.

Jon Osterman era um físico, filho de relojeiro que iniciara a vida profissional como relojoeiro também, até que seu pai sabe de Nagasaki & Hiroshima. Despejando pela janela as engrenagens de um relógio que o filho cuidadosamente consertava, lhe sugere seguir uma profissão que não tenha se tornado antiqüada face aos últimos eventos, a profissão de Albert Einstein, por exemplo.

Toda a rede de relações possíveis entre as engrenagens de um relógio, a física quântica & Deus (o grande relojoeiro das antigas metáforas teológico-filosóficas) será explorada.

Empregado do governo dos EUA em experiências com campo intrínseco, Osterman, por descuido certo dia, esquece o relógio que consertara para a namorada dentro do intrinsic field subtractor: volta à máquina para buscá-lo & acaba preso dentro dela, com a seqüência irreversível iniciada.

É o seu fim, claro; seus colegas, aterrorizados do lado de fora, aguardam o desastre; Osterman vê os pêlos de seu braço se eriçando, olha para o relógio, que agora funciona perfeita & inutilmente, fecha os olhos &, no futuro em Marte, sua voz em off diz:

"Sinto medo pela última vez".

Difícil não ficar comovido pela absoluta beleza metafísica do achado. Eu fiquei, mas sou antigo aficcionado: li a HQ pela primeira vez em 1988.

Osterman é desfeito na máquina, mas se refaz mais tarde, como refazia os relógios desmontados, tornando-se quase um deus (responderia que é apenas uma marionete que vê os fios), mas sem conseguir compreender a moralidade de seus atos indiferentes, até seu auto-exílio em Marte, ao som de "Prophecies" & "Pruit Igoe", de Philip Glass.

Flutuando quase em posição de lótus sobre a superfície do planeta vermelho, vitrifica a areia numa enorme estrutura móvel, reminiscente das engrenagens de um relógio; revê a própria vida ilustrando sua percepção simultaneísta do tempo; & aprende sobre o valor da vida humana com o "milagre termodinâmico".

15 ou 20 minutos verdadeiramente belos dentro de um filme esforçado, desigual, que, de qualquer forma, não faz jus à obra de onde veio.

3 comentários:

Unknown disse...

Eu não sabia o que dizer do filme. Você disse. E é exatamente isso.

maiara gouveia disse...

Srta. Gouveia extasiada com a recente hiperatividade deste blogue.


O meu, estático há meses.


Deu vontade de brincar de novo por lá.


E de ladrilhar, com pedrinhas de brilhantes, para amores e amoras.


Amanhã. Amanhã, é claro.


& haverá o Bistrô Gouveia, meu site, ainda na planta, vc verá.


Ah, o senhor Villa, sempre me inspirando...


Besitos, cavalheiro.

Fábio Aristimunho disse...

Li Watchmen pela primeira vez acho que em 1992, na Biblioteca Pública de Foz do Iguaçu, meio que por acaso. Desde então a história é uma das minhas referências.

Concordo com as suas excelentes críticas, há muito descompasso entre original e adaptação. Mas como tradutor sou defensor da infidelidade, ou no mínimo condescendente com ela, já que por ofício sei que sempre haverá perdas e ganhos na transposição de uma linguagem a outra. A questão é se os ganhos compensam, equilibram as perdas, e no caso do filme você nos mostra que são dois pra lá, dois pra cá, não é mesmo? Então, pra dizer o mínimo, podemos concluir que vale o ingresso!

Obrigado pelos elogiosos comentários à coleção Poesias de Espanha, esse meu pequeno monstro quadricéfalo que quase me engoliu.

Grande abraço