quarta-feira, 29 de julho de 2009

Sem janelas ou portas para a realidade

Fernando Pessoa, em retrato a óleo de Almada Negreiros


Ponho, abaixo, ensaio que escrevi em 2004 sobre as relações entre o drama, a despersonalização, & a poesia de Fernando Pessoa. Gaudete.

“Do you think I am easier to be played on than a pipe?” Verdade ou mentira?

Alguns críticos fizeram com Pessoa o mesmo que com Camões, não se preocuparam em lê-lo e chamaram-no simplesmente o “Poeta” — para que a coisa fique evidente eu coroei a palavra de louros.

Querem saber se ele não estava nos pregando uma peça ao fazer Alberto Caeiro discursar contra a metafísica, talvez ele próprio, Caeiro, um metafísico, por esse suposto artifício; o interminável comparativismo monotemático entre Campos e Whitman, para a suntuosa conclusão final de que tanto um como o outro escreviam versos livres; houve até um professor universitário que tentou imitar Pessoa, compondo uma versalhada ridícula, de que gargalham os próprios graduandos, com todo o direito, porque, afinal, ele a publicou; o Nevoeiro que encobre Mensagem até hoje apenas porque não o lêem como um épico simbolista ou moderno, como quiseres, mas como penduricalhos que lembram vagamente uma árvore genealógica.

Pode-se continuar a lista até virar o estômago do leitor ou até ele virar a página. Pessoa era um homem inteligentíssimo, mas a reverência que se possa ter com um poeta não deve nos impedir de tentar entendê-lo.

O interesse imediato desse texto é pensar brevemente na extensão do drama na poesia de Pessoa. Suponho que comporte no mínimo duas partes: a do drama como tal e a do processo de despersonalização.

A tradição do teatro em Portugal tem um aspecto imobilista, discursivo, que o leva a não ser particularmente notável em comparação, por exemplo, ao espanhol e ao inglês, que têm grandes tradições de dramaturgia; e isso fez Pessoa admirar Shakespeare de um modo peculiar: escreve um ensaio inteiro sobre ele sem considerar o mecanismo específico do teatro, mas detendo-se em minúcias de psicologia e na discussão psicológica da genialidade.

Pessoa tem uma relação muito interessante com Shakespeare, o considera muito parecido consigo (notem que o chama “histero-neurastênico”, isto é, como orgulhosamente qualificava a si mesmo) e provavelmente o lia como uma filosofia refinada das sensações — embora pouco intelectual.

Talvez visse dessa maneira os monólogos de Hamlet, ou o conflito de identidade que o inglês oferecia nas freqüentes ambigüidades dos personagens. Posso imaginar o gosto que Pessoa achava numa linha como “I am not what I am”, que sai da boca de Iago. Estas linhas de Álvaro de Campos, por exemplo, são bem hamletianas:

De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?

Sim, Gil Vicente é muito bom — se o nome ocorreu ao caríssimo leitor que se incomodou com a afirmação feita acima sobre tradições teatrais — mas não fica inteiro se lemos um ato de Lope de Vega.

Porque Lope, assim como Shakespeare e uma porção de outros, entende que uma peça é conduzida principalmente com diálogos, mas com diálogos que sirvam à ação, e não apenas ao elaborado discurso doutrinário — embora nada me faça esquecer o magnífico engenho ovidiano de Vicente nestes dois versos da “Barca do Inferno”:

Tomarês um par de remos,
veremos como remais.


Remoque mouentur, como vemos na Ars Amatoria, de Ovídio. Mas isso é o artesanato do verso.

Mesmo se consideramos a linguagem poderosamente ornamentada de Shakespeare percebemos que ela se orienta para uma finalidade dramática, que respeita o espaço cênico como um lugar com regras próprias e diferentes, seja da poesia, seja de outra arte qualquer. No espaço cênico uma força necessariamente atua sobre a outra: personagens modificam a ação ou agem como catalisadores de um determinado efeito, transformam outros personagens, etc.

Lope e principalmente Shakespeare, por motivos diferentes, reinventaram o teatro clássico nos termos que os românticos fariam diluir pelo mundo, até chegarmos ao drama burguês, e até chegarmos a um novo nó, Ibsen e Strindberg, e às experiências incomparáveis de Beckett.

Já qualquer uma das tentativas de drama de Fernando Pessoa costuma ser fraca como drama porque não tem nada a ver com isso, mas podemos dizer que há um discurso filosófico, muito falatório e os personagens são impermeáveis uns aos outros.

Um leitor apressado tiraria daí a conclusão de que Pessoa não sabia o que queria, ou se perdeu. Mas isso não aconteceu pela própria motivação de Pessoa, que não tinha nada com ação, mesmo porque seria incapaz de considerar os desenvolvimentos necessários que levam a ela. Ou poderíamos até dizer que, tendo se perdido, se achou, porque Pessoa não teria sido nada sem a idéia drama, do mesmo modo que podemos afirmar que T. S. Eliot não seria nada sem a idéia de drama.

Tanto um como o outro perceberam o poder do monólogo dramático, e Eliot o recuperou num estilo já famoso, que é o de fragmentos de discursos dramáticos aparentemente desconexos, utilizados em “The Love Song of J. Alfred Prufrock”, em The Waste Land, etc. Fernando Pessoa se desmembrou em outros autores, que são ele mesmo e não são.

Já o compararam a Ezra Pound e suas personae, mas também se demonstrou que a máscara grudava mais fundo na cara de Pessoa, enquanto Pound tomava as vozes de outros poetas para incorporá-los à sua própria, num jogo de reinvenção que reordenava os princípios retóricos de tradução, imitação e emulação.

E por que a máscara grudava mais fundo na cara de Pessoa? Porque não se apropriava da voz dos outros nem apunha um pseudônimo sob as próprias obras: num caso único na literatura (1), ele inventou identidades quase autônomas, com estruturas de verso muito singulares, nitidamente recortadas umas das outras, como se Pessoa fosse três ou quatro outros poetas (2).

Curiosamente, a anglofilia de Pessoa fez com que a fonte a partir da qual desenvolveu suas idéias de monólogo dramático tenha sido a mesma que para Eliot e Pound: os elisabetanos (em especial Shakespeare) e, entre outros, Robert Browning.

Em um texto escrito por volta de 1930, chamado “Os graus da poesia lírica”, Fernando Pessoa estabelece quatro graus de refinamento da inteligência poética, em que o terceiro “é aquele em que o poeta, ainda mais intelectual, começa a despersonalizar-se, a sentir, não já porque sente, mas porque pensa que sente”.

Arrola meio de cambulhada nesse contingente aquelas cantigas de ninar de Tennyson (“The Lady of Shalott”) e diz que “assim, e mais, é Browning, escrevendo o que chamou “poemas dramáticos”, que não são dialogados, mas monólogos revelando almas diversas, com que o poeta não tem identidade, não a pretende ter e muitas vezes não quer ter.”

O quarto grau seria aquele “muito mais raro, em que o poeta, mais intelectual ainda mas igualmente imaginativo, entre em plena despersonalização. Não só sente, mas vive, os estados de alma que não tem diretamente”. É óbvio que está definindo o tipo de poesia que ele próprio escreve, e que exemplifica discretamente, se se pode chamar a isso discretamente, com Shakespeare em Hamlet e no Rei Lear, e Browning em Men and Women e nos Dramatic Poems.

A palavra a se reter é despersonalização.

Octavio Paz e Antonio Tabucchi se detiveram nesses aspectos tão pitorescos como de grande impacto dentro de uma literatura mundial que assistiu, desde o fim do século XIX, ao estraçalhamento da figura una e coerente do poeta, e que o levou a todo tipo de despersonalização: Pessoa é claramente uma das figuras emblemáticas desse processo.

Os franceses o traduziram lá do seu jeito e o veneram, e essa foi uma das maneiras de Pessoa se tornar justamente famoso entre os que não lêem português (não por acaso, Paz foi entrar em contato com a poesia do português em Paris, em 1958, e Tabucchi, quando estudava na Sorbonne).

Pessoa apreciava a idéia de um teatro de si mesmo, e o explicava até com nomenclatura psiquiátrica e mediúnica: como bom português, sentia que sua própria extravagância era inaceitável ou incompreensível sem se tornar alguma espécie de problema.

Evidentemente, seu teatro funcionou, não como tal, mas de uma maneira que o dispensava da ação, inventando e definindo vozes para autores diferentes. O que seria o contrário tanto do "Primeiro Fausto' (com o rótulo de “poema dramático”) quanto de "O Marinheiro", mais orientados num sentido teatral. Segundo Álvaro de Campos:

A FERNANDO PESSOA
depois de ler o seu drama estático “O Marinheiro” em “Orpheu1”

Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro,
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz uma das veladoras
Com langorosa magia:

De eterno e belo há apenas o sonho.
Por que estamos nós falando ainda?

Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras...

Sem complicar mais ainda o já complicado, podemos dizer que ele próprio se satiriza, na voz daquele que usa mais de ousadia verbal. Pessoa sabia exatamente o que não existia no seu teatro. Poderíamos compará-lo a outro autor de estatura aproximada e também muito imobilista, que é Paul Valéry: Valéry também criou personagens que são a manifestação de um pensamento original, muito perspicaz e complicado, e pouco mais que isso.

Esses diálogos têm mais a ver com a filosofia do que com o teatro. Na poesia são um tipo de oratória filosófica um pouco mais detalhada que a de Goethe no Fausto. Foram programados para ser desse modo, e mesmo no caso de Pessoa poderíamos pensar assim, pois ele anota cuidadosamente “drama estático” sobre o texto. E o que era o “drama estático”?

“Chamo drama estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação — isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito enredo”, Pessoa escreveu em 1917.

Seus contos são “filosóficos”, ou “do raciocínio”, e é por isso também que se costuma ceder a alcunha metafísica à sua poesia: todo o pensamento e a arte de Pessoa se encontram num imóvel teatro mental, onde as pessoas e as coisas são idéias, e para quem mesmo assim “pode haver revelação de almas sem ação, e pode haver criação de situações de inércia, momentos de almas sem janelas ou portas para a realidade”.

A pequena dificuldade está aí mesmo: realidade, no caso de Pessoa, é apenas aquilo que está dentro da cabeça dele. Caeiro é um metafísico? A resposta: qual é a sua definição de metafísica? “De real, temos apenas as nossas sensações”, e isso é Pessoa, novamente.

Creio que Mensagem seja seu poema mais completo e uma grande solução dramática, porque, ao mesmo tempo em que pode ser considerado um épico, num sentido de épica renovado pelas obras do século XX, também é dramático, pelas vozes que se encenam o tempo todo no poema, como fantasmas do passado anunciando a grande dúvida daquela vaga e esotérica missão futura do Império, e é também um poema que se utiliza de estruturas da chamada lírica.

Por fim, ainda busca sintetizar um ser muito íntimo português, como Pessoa o entendia, e se escreve preciosamente numa graphia muyto antiquada e etymologica (3).

Se, por um lado, o espírito decadente fin-de-siècle se revela tanto nos “dramas” como em boa parte da poesia do chamado ortônimo, em Mensagem temos Pessoa revelado por inteiro e em toda sua dimensão de grande poeta moderno, que nos deixou o poema mais sólido — soa absurda, essa palavra — da língua portuguesa nesse pequeno volume.

Nele há a compressão do universo complexo e diversificado dos heterônimos na possibilidade dramática perfeita para seu espírito, porque seu teatro era mental, e nada tinha a ver com as coisas, as que passam diante dos nossos olhos, sob a luz do sol ou da lua. Isto é, nem verdade, nem mentira.

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1 Sou obrigado a discordar de Octavio Paz, quando situa o Barnabooth de Valéry Larbaud como heterônimo nesse mesmo sentido. Embora tenha obra e biografia separadas das de seu inventor, Barnabooth é tão superficial quanto um pseudônimo, produzido quase como uma diversão de fim-de-semana. Comparar Barnabooth com o Hugh Selwyn Mauberley de Pound já não seria inteiramente imprestável.

2 Temos o milimétrico artesanato estrófico de Ricardo Reis, que deve a Horácio e se distingue naturalmente do verso livre usado por Campos e Caeiro que, por sua vez, são opostos não só na escolha de palavras e nos temas, mas ritmicamente. O chamado Fernando Pessoa ortônimo escreveu um “Cancioneiro”, etc. Ou, como disse Paz: “Reis cree en la forma, Campos en la sensación, Pessoa en los símbolos. Caeiro no cree en nada: existe.” Eu diria, em relação a Caeiro: sim, ele dá essa impressão.

3 E é, portanto, um erro crasso o dessas novas edições que assumem, com ares benevolentes ou descaradamente comerciais de se “facilitar a leitura”, a destruição de sua ortografia original. É a supressão de uma camada inteira de sentido.

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