sábado, 27 de março de 2010

Arte, imaginação, imodéstia

O laço dela obrigava a pessoa a dizer a verdade, o que podia ser constrangedor.

Ricardo Domeneck postou um texto muito interessante sobre questões de função da obra de arte na sociedade em que se vive (a urgência de se reconsiderar DADA, por exemplo), & questões de gênero — não o gênero literário, mas gender — que ultrapassariam a mera questão de gênero, isto é, menos a consideração da condição sexual dos autores das obras, & mais o sentido que isso tomaria em obras relevantes.

Deve-se ler até porque a questão de gender não costuma ser proposta com o bom-senso que Domeneck emprega lá.

Em geral a história de gender veio lavando, em algumas décadas, as mentes de muitos departamentos de Literatura em universidades di tutto il mondo, & é uma das coisas que tornaram a crítica literária um traço, escrava do politicamente correto. Fez elevar nulidades a wits, porque decorosamente dentro do receituário politicamente correto das revisões literárias.

Mas este texto aqui é claramente outra coisa. Leiam:


http://ricardo-domeneck.blogspot.com/2010/03/contexto-uterino-ou-sambando-com.html

Domeneck oportunamente lembra uma conversa muy divertida que tivemos há algum tempo, sobre uma obra de Lenka Clayton, o vídeo “Qaeda, quality, question, quickly, quickly, quiet”, um vídeocomentário engenhoso ao então presidente do mundo, George Bush, com o que demonstrava o mecanismo repetitivo, lavagem mental, de seus discursos mecânicos, & a pesada ideologia mal disfarçada em seu vocabulário assaz restrito.

Domeneck lembra de eu lhe dizer que, em 1000 anos, qdo. Bushinho Jr. for uma nota de rodapé na vasta História da Infâmia Universal (o certo seria dizer, "em 5 anos"), o vídeo de Clayton não terá mais sentido, & argumenta que isso é discutível nos termos de que um artista futuramente poderá ter Clayton como uma possibilidade de recurso expressivo contra coisas assemelhadas.

O que quis dizer então é que, muito menos pelo tema de Clayton ser o Georgie, ou, numa sinédoque, sua condição de notória imbecilidade & o veneno que foi o seu governo — não criticaria o ataque dela a isso, ou estaria louco ao fazê-lo, porque ao menos uns três dos meus poemas de Icterofagia miravam em Bush, também — & mais pelo fato de que a obra de Clayton é um comentário, é que não terá sentido.

Uma obra pode atacar costumes empedernidos; uma obra pode fazer o que bem entender, mas o fato que permanece é que uma obra deve ficar em pé por si, como obra.

Clayton dá muito destaque à persona de Bush, seu recurso é a edição; se baseia na repetição da óbvia estupidez recalcitrante em que mira. Como um comentário localizado, feito de ironia, é exato: é como uma charge política do jornal de ontem, que tem aplicação & efeito imediatos, & que apenas vemos num futuro próximo se o desenhista for bom, ou como registro histórico. Existe em seu vínculo temporal & político, mas está circunscrito a ele.

A diferença para o poema de Mandelshtam, bem lembrado por Domeneck, & o porquê de ainda o lermos com interesse depois de Stálin bater suas botas, é muito simples: lemos a habilidade poeticamente imaginativa de Mandelshtam & sua raiva calculada na palavra, sua percepção anotando cada detalhe revelador, figurando Stálin como monstro desproporcional (na analogia de sua perversidade ser oposta a qqer harmonia), mas são coisas que se abrem para qqer situação de tirania, também.

Escrever que Stálin forja decretos como sapatos, ou notar seus imensos bigodes de barata, os dedos gordos, & o finale de pura percepção, que diz da felicidade de Stálin como a de um “georgiano mastigando uma framboesa” ao ter mais uma vítima, assinala não apenas aquele ditador em específico, mas um núcleo de perversidade encontrada em muitos lugares & tempos, amplia nossa percepção, associa a crueldade diretamente ao prazer, & vemos uma sangria no fruto arroxeado em impiedosa mastigação.

Não falo do verso em que foi escrito porque, hélas, não leio russo.

Temos Mandelshtam desenvolvendo imagens icônicas dessa perversidade com seu engenho ad hoc, que por isso não é meramente noticiário, mas uma arte, como todas, da percepção.

Pode-se repetir a seminal pergunta de Duchamp, aplicada ao caso: “Toda obra tem de ser obra de arte?” Não. Pode ser uma intervenção pontual que procura reparar desproporções, como me parece o caso. Entre o vídeo & o poema há diferenças de grau, de escopo, de habilidade perceptiva.

E disse a Domeneck, que talvez não tenha me acreditado na ocasião: qdo. Bush for a tal nota de rodapé, nós ainda seremos lidos. Nós, os atuais joões-ninguém? Yessir.

Por quê? aqueles ávidos por uma resposta eu encaminho aos últimos versos de Ovídio nas Metamorfoses, nos quais seu orgulho — que na época devia soar como incrível imodéstia — considerava que seria lido enquanto durasse o Império Romano.

Mas nós ainda o lemos, séculos depois de evaporar o Império Romano, para eventual surpresa do fantasma de Ovídio.

“Nós quem?”, perguntam os espertíssimos leitores deste passageiro blog. “Nós” qqer um que queira saber alguma coisa que preste. Ou ao menos nós, os imodestos.

PS: Linda Carter sabia se transformar, girando, sem ficar tonta. E resistia a uma explosão a cada vez. Não é pouco. E tinha um nome apropriado à pessoa, o que é curioso. E o Warhol não warholizou a Linda Carter? Se não, devia ter.

3 comentários:

Érico Nogueira disse...

Eu também tô nesse 'nós' aí! Belo texto. Abraço. E.

Ricardo Domeneck disse...

Ótimo texto, Villa. Como é bom encontrar vida inteligente na poesia brasileira contemporânea. Teu blogue, o do Érico, o do Rodrigo Damasceno, entre alguns outros, são um prazer para os olhos e a cabeça. Pena que os críticos estejam dormindo.

Dirceu Villa disse...

Grazie, carissimi.

Ricardo, mon ami: seria de fato muito melhor, mais saudável, SE a literatura brasileira funcionasse com a crítica literária.

Não em peso, que isso jamais acontece — & por motivos óbvios — mas ao menos uns bons nomes.

Em todo caso, vós sabeis que, em sua grande maioria, a literatura brasileira se fez & se faz à revelia da crítica de sua própria época. Isso é histórico.

As questões que a crítica está discutindo hoje são as de 30, 40 anos atrás.

Outro dia me peguei pensando, inclusive: como é que um poeta como o Murilo Mendes é menos lido & considerado do que Mário de Andrade, ou Manuel Bandeira?

Um deles era simplesmente um desastre, o outro, um poeta de capacidades modestas. Mas o Murilo Mendes é um dos grandes poetas brasileiros do século XX.

Como costumo dizer, O Brasil é muitas vezes o mundo bizarro, do Superman Bizarro: onde as coisas costumam ser redondas, lá é quadrado, & ainsi de suite.

Abrazo,

D.