segunda-feira, 15 de março de 2010

Deus Priapo mentulatior non est

Detalhe do quadro de Nicolas Poussin, Himeneu travestido assistindo a uma dança em honra a Príapo (c.1638), restaurado & exposto no MASP


Ninguém conseguia ver. O quê? Um detalhe muito importante: o pênis ereto & colossal da estátua de Príapo no grande quadro de Poussin, do acervo permanente do MASP.

Restaurado por brasileiros (sobretudo Regina Costa Pinto Moreira, que trabalha na França) & franceses, aí está, acima, como ficou a parte central antes da reparação completa. As cores, além do mais — como quando há a retirada das históricas camadas escuras de verniz & sujeira —, agora brilham.

Poussin se dedicou a temas semelhantes em seu quadro do Triunfo de Pã & em outro Bacanal, mas, por sorte nossa, a tela do MASP é também extraordinária, uma composição em que o caráter central do deus esculpido & o ritmo fluente & proporcional das duas partes em que a tela se vê dividida tornam o quadro especialmente harmonioso & hipnótico.

Assim, E. H. Gombrich anota seu nome simplesmente como Dance of the Nymphs [A Dança das Ninfas], no ensaio "Reynolds's Theory and Practice of Imitation: Three Ladies Adorning a Term of Hymen", parte de seu ótimo livro Norm and Form, de 1966.

Himeneu é o deus romano do casamento, & aparece emblematicamente cantado no poema LXII de Catulo. Gombrich discute, no ensaio, as raízes iconográficas que ligam o Himeneu ao mais, digamos, "rústico" Príapo. E o decoro aplicado à circunstância, na invenção do pintor.

Joshua Reynolds (um daqueles tediosos pintores ingleses do século XVIII) pintou uma tela encomendada na qual o motivo que serviu ao retrato daquelas três jovens damas casadoiras da sociedade inglesa é o rito de adornar uma estátua de Himeneu.

Teria como fontes o próprio Poussin — à época, como esclarece Gombrich, uma autoridade na grande maneira — & ambos estariam se reportando ao Hypnerotomachia Poliphili, o misterioso livro alegórico de Francesco Colonna, finamente gravado & publicado em 1499 pela oficina veneziana de Aldus Manutius.



No Hypnerotomachia descreve-se o sacríficio ao Himeneu, & a gravura correspondente ao texto mostra o triunfo de Príapo (acima) com o sacrifício do asno ao deus, como lemos nos Fastos, de Ovídio, & com os oficiantes quebrando frascos de vidro com o sangue do asno, com leite & vinho, & lançando-lhe frutas, flores & folhas, pois é um deus da fertilidade.

É interessante lembrar que a exposição também apresenta uma edição recente (1999) do livro aldino, em tradução para o inglês, aberta na página da gravura, estabelecendo a conexão iconográfica, embora eu não me recorde — posso estar errado — de ter lido o nome de Gombrich por lá.

Poussin é devolvido, em certo sentido, a si mesmo, porque aquela clarté française que se lê nos textos literários poderia imaginariamente ser transposta a seu estilo plástico. Enfim, isto é apenas um reclame, como diziam in illo tempore, para que as leitoras & os leitores aproveitem & dêem um pulo no MASP para prestar seus respeitos ao deus & ao pintor. Aliás, me ocorre agora um trocadilho de matar. Melhor não.

3 comentários:

Daud disse...

Melhor não!
hahahaha

Dirceu Villa disse...

Temos sorte com as artes plásticas, ao menos no sentido dos museus: o MASP & a Pinacoteca são museus de acervos notáveis & complementares.

A Pinacoteca é melhor no sentido museológico: na disposição das peças, no uso do espaço interno, na iluminação. E tem um acervo de brasiliana nas artes quase sem comparação (o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro é a outra grande referência).

O MASP, depois que abandonou o esquema inicial & ousadíssimo de exposição do acervo permanente imaginado por Lina Bo Bardi, & depois de tantas gestões desordenadas, vale mesmo pelo acervo, em geral mal arranjado, mal iluminado & com boa parte dele indisponível para o visitante.

Mas é um acervo colecionado com absoluta maestria. A escolha das peças que compuseram o núcleo dessa coleção é uma das escolhas mais brilhantes do mundo.

Porque as grandes coleções européias & estadunidenses já estavam montadas qdo. Bardi chegou. Ele foi capaz de compor o impossível, reunindo ainda Tintoretto, Van Gogh, Rafaello Sanzio, Delacroix, Holbein, o próprio Poussin de que falo na postagem, etc. a um grupo finíssimo de petits maîtres que fizeram do MASP um museu único, conciso & rico, educativo, uma referência em arte & crítica de arte em ação, na forma de escolha.

É esperar que o MASP volte a ser o grande museu que foi na concepção dos Bardi.

Um abraço,

D.

Janaína A. S. disse...

Já o tinha visto, mas agora, depois da restauração, certamente vou querer ver de novo...