sexta-feira, 16 de abril de 2010

FUNZIONA SENZA VAPORE


Yoko Ono & John Lennon, por Annie Leibovitz,
foto que foi capa da Rolling Stone em 1980


Ricardo Domeneck postou uma continuação daquela sua ótima postagem que derivou em um debate triangular, incluindo a mim & ao também poeta Érico Nogueira.

Ele levanta questões & muito sensivelmente as deixa em aberto, para a exploração. Eu estava para postar sobre o documentário em cartaz aqui em SP (com 4 anos de atraso) sobre a perseguição do governo Nixon a John Lennon, & creio que ambas as coisas são convenientes, ao que ajuntarei uma pequena observação que fiz, como poeta, em um outro debate recente.

EUA X John Lennon

Domeneck se pergunta sobre a possível inutilidade atual da poesia, & aventa a possibilidade de que esteja apenas “cansado de pertencer à classe dos artistas absolutamente inofensivos”.

Em princípio, eu diria ao meu caro Domeneck que não se preocupasse, que os bons poetas jamais são inofensivos. É preciso explicar como & por quê, mas, antes, a digressão John Lennon.

O documentário The U.S. vs. John Lennon [Os EUA X John Lennon, 2006], de David Leaf & John Scheinfeld, mostra como se pôs o FBI & o aparelho de Estado estadunidense contra aquele camarada finíssimo que cantava algumas das melhores músicas de sua época & falava insistentemente contra o crime descomunal sendo cometido no Vietnã.

Parece chocante a importância que aquele governo brucutu atribuía à arte de protesto de Lennon, que deve boa parte de sua energia performática a Yoko Ono — assim como Ono deveu a ele o escopo incomum a que sua arte performática foi levada, & a habilidade de se aproximar de um público vasto.

Lennon & Ono se utilizavam, basicamente, de estratégias postas em circulação pelos dadaïstas do Cabaret Voltaire: ao invés do ordinário esquema panfletário que todo mundo usava (de modo mais ou menos eficaz, dependendo da eloqüência flamejante), empregaram um método que consistia em atrair a atenção, não apenas pela imensa popularidade dos protagonistas à época, mas também por um pacifismo de “revolução pela alegria” (dixit Nietzsche sobre como deveria ser uma revolução), inventando atos desestabilizadores, como sugerir que as pessoas ficassem em suas camas, deixando, entre outras coisas, o cabelo crescer.

Ou espalhando outdoors com o dizer WAR IS OVER (reminiscente das manchetes de 1945) & de mínimo subtítulo if you want it; ou fazendo concertos perto de ajuntamentos republicanos; ou espalhando tiradas irônicas na imprensa; ou emprestando sua popularidade para os líderes dos protestos, ou para os Panteras Negras, etc.

Eles incomodaram o poder corrupto & sedento de sangue. Incomodaram a tal ponto que a delicada administração de então tentou expulsá-los do país; por sorte, eles podiam pagar advogados caríssimos, que criaram um meio de emperrar a determinação do governo.

Popularidade

Aí é que está: o que Lennon & Ono fizeram só foi possível porque eram extremamente populares.

Porque moviam milhões de fãs no mundo inteiro, tinham dinheiro & disponibilidade (além de extraordinárias coragem & inventividade), & a mídia corria atrás de qqer. coisa que lhes desse na telha lançar.

Uma efetividade da arte em seu próprio tempo & em dimensões palpáveis se dá apenas nessas condições ideais de temperatura & pressão.

A música popular catapulta alguns de seus artistas (mesmo assim poucos) a essas dimensões. Outras artes, como o cinema, também. A literatura, não.

(Se v. pensou em Paulo Coelho, pensou errado, que Paulo Coelho não é um escritor, mas um imenso conglomerado comercial, como o MacDonald’s).

Por que não?

A resposta mais simples & evidente, a primeira, é: porque é preciso ler a literatura. Mesmo a literatura, ou a poesia, exercida como performance vocalizada, não atinge um público enorme por suas naturais peculiaridade & dificuldade (ver o próprio caso de Yoko Ono performer pré-Lennon).

Para se ter um público & operar diretamente nele é preciso ter um trabalho popular. Para se ter um trabalho nesse nível de popularidade, a coisa não pode ser difícil, deve ser possível entendê-la quase de imediato, & em larga escala, cobrindo várias faixas de público ao mesmo tempo.

Os poetas querem ser difíceis? Eles querem afastar suas chances de ganhar uma fortuna & ser lidos pelo mundo?

Creio que não, creio que nem mesmo eles seriam tão estúpidos, mas penso na minha própria poesia, também: é como percebo a linguagem, como sou capaz de registrar determinadas coisas, ou padrões, é o sentido que tenho de um fazer, & nada faço para complicá-lo. É como é, ainda que as pessoas olhem & decidam que não entendem, nem querem entender.

Qui possum facere? disse o cordeiro ao lobo na fábula antiga — e aqui já deslizei sem querer para um latim, bobo & elementar, mas que atrai narizes torcidos & torcicolos.

Ainda assim, uma performance vocal tem mais chance de chegada em um público mais vasto. Um trabalho plástico, mais ainda; música popular, ainda mais; cinema estadunidense: v. é um deus nesta terra liliputiana.

Alcance & escopo

Mas tem o seguinte: não é pela falta de popularidade, da efetividade in loco, que uma arte como a poesia pode ser imaginada como algo inofensivo.

Em um debate sobre poesia, faz pouco tempo, surgiu essa questão muito normal de para quê a poesia? O pressuposto era o contingente minúsculo de leitores dessa arte, prima pobre das outras artes bacanas.

Se a poesia exige tanto & atinge tão poucos, não seria algo realmente inútil, fútil, ineficaz, talvez mero efeito de inércia cultural, & anacrônico?

Foi aí que eu entrei. Não pelo meu envolvimento hipoteticamente emocional como poeta moi-même, mas porque me parecia que as pessoas estavam agindo — embora com a justiça de querer saber — meio ansiosamente.

Daí eu disse que parassem para pensar em como concebem a realidade à volta. A quem devemos nossas idéias de como é o mundo? A filósofos & a artistas de toda espécie.

Nossa imaginação & mesmo nossa consciência formal do mundo é continuamente moldada pelas artes & pela filosofia (laica ou religiosa).

O que os impenetráveis poetas modernos inventaram está cada vez mais se tornando o modo como pensa & age mesmo a mais desligada pessoa imaginável. As concepções de uma percepção fragmentária, cumulativa, poliglota & descentrada estão virtualmente por toda parte, hoje, embora fossem coisas muitíssimo recessivas quando surgiram.

Com “recessivas” quero dizer: meia-dúzia de pessoas estava atenta a essa arte QUANDO ela acontecia. Os demais liam sonetos de almanaque, escandidos nos dedos, com rubim aqui & ali & com verso d’oiro no final — isso qdo. quando liam alguma coisa.

Zero de percepção.

A percepção de uma vanguarda perceptiva demora a ser incorporada, assimilada. Não se pode esperar que essa arte, por melhor que seja (& sobretudo se for a melhor), tenha um efeito muito definido na realidade do momento em que se faz.

Onde estão as pessoas para notá-la? Elas ainda não existem. Ou estão sob a anestesia social que torna o mundo manipulável por políticas (o q. não vai mudar, porque o acomodado é o acomodado & disso todos sabem).


"Your own, personal Jesus, /someone to hear your prayers/, someone who cares".


Lennon, Depeche Mode, poesia

Voltando a Lennon: ele teve de se tirar da proporção humana para enfrentar algo igualmente desproporcional. Para isso, sua peculiaridade natural teve de tomar contornos mais largos, inclusivos, ele teve de se tornar uma bandeira onde coubesse muito, & um alvo para uma bateria antiaérea que ia de governos poderosíssimos ao anônimo idiota com uma arma na mão.

É a proporção do mártir, & um mártir achata suas próprias ambigüidades humanas & artísticas porque serve a uma causa, em geral a mais nobre possível, uma causa límpida, justíssima, sem sombra.

Um artista tem seu direito à ambigüidade & ao sombrio, tem seu direito de não ser seguido por quem quer um messias, ou um personal Jesus, como o Depeche Mode já descreveu tão bem (& que agradou de Johnny Cash a Marilyn Manson).

Por mais que uma ação nobre tenha repercussão, o artista está tensionando uma corda muito delicada, algo de que ele mesmo entende pouco, porque está fora de seu alcance, & do alcance de qqer. um.

A abnegação exigida para isso é sempre um desafio notável & em geral trágico, mas o contorno desproporcional de pureza que isso exige juntamente é falso, é um efeito de veracidade produzido circunstancialmente & que produz depois sudários & peregrinos.

Um artista — ou este artista — desconfia.

E, desconfiando, pensa numa arte de efeitos talvez mais modestos a curto prazo, mas mais complexa em sua natureza ambígua, & com mais raízes nas consciências a longo prazo.

Eu diria, simplificando: a poesia nunca é inofensiva. Ela é a maior força da História, a mais complexa & arcaica. E ela plasma a vida mental mais repleta de energia, que por sua vez plasma a realidade.

A poesia é discreta, em geral, não faz fumaça, mas o que é poesia hoje é realidade amanhã.


But all this is folly to the world.

6 comentários:

Anônimo disse...

como algo tão inofensivo (ok, discreto) pode ser tão forte? talvez por uma questão de percepção: o poeta é aquele que lida com as profundezas mais fundas da cultura em sua dimensão temporal!

Dirceu Villa disse...

A poesia é uma arte de que sempre se diz estar prestes a desaparecer, mas não desaparece.

Creio que a poesia é uma arte impossível hoje, & é por isso que os grandes poetas em atividade são especialmente notáveis: realizam o impossível.

Digo "impossível" porque tudo parece conspirar contra: a educação é uma desgraça, diz-se que as pessoas não querem ler, as editoras não se esforçam (fora as raras exceções), o jornalismo está em crise & a crítica quase inexiste. E a poesia é linguagem extremamente complexa.

Então por que perdura?

O que se acha na poesia não se acha em nenhuma outra arte.

Não apenas é a arte mais veloz que há (na associação de idéias aparentemente díspares), mas faz aproximar todas as outras artes, com as quais sempre teve relação, & para as quais sempre serviu de agente aglutinante.

A poesia age por sedimentação: um leitor é capaz de extarir cada vez mais dela quanto mais lê. Aquilo vai criando camadas na mente, refinando sentidos & inteligência. Normalmente, um leitor de poesia começa por acaso, mas vai lendo coisas cada vez mais amplas & complexas.

É uma arte muito estranha, avessa a uma época ansiosa como a nossa, mas não há como removê-la da experiência. E talvez seja por isso que, mesmo parecendo um escandaloso contrasenso, ela persiste.

Abraço,

D.

Anônimo disse...

Lamento, mas Jameson percebe muito mais do que sonha sua vã percepção. Vc há de dizer: mais uma defesa do neo-marxismo. Mas não é isso, é mais a reivindicação de reconhecimento a uma mente de grandeza, não devido ao marxismo, mas, até algumas vezes, apesar dele.

Dirceu Villa disse...

Ei, meu caro anônimo, quase não te achei, rapaz: você postou um comentário sobre a mensagem acima nesta abaixo, pombas.

Buenas: lamento também &, assim, separados, lamentaremos juntos, porque o Jameson é uma daquelas empulhações críticas que se arrastam em nossa época molóide.

A mente dele só é grande no sentido da quantidade de besteira que cabe lá. Nesse sentido, concordo, é muito elástica. Teórico no pior sentido do termo, viciado em aplicar um mecanismo homogêneo sobre coisas heterogêneas, diz bobagens a granel.

É triste, particularmente, a comparação que estabelece entre o quadro das botas usadas de Van Gogh & as sapatilhas de bailarina do Warhol: lê a bidimensionalidade de Warhol ideologicamente, porque é óbvio que não consegue olhar para uma obra de arte.

Qdo. a pessoa não tem a menor noção do que tem à frente do nariz — em particular a arte —, seu cérebro em geral empurra um argumento ideológico pra servir de tapume, já que isso impressiona muito as pessoas.

Teoriquês é a doença crítica do século XX, vazando para o XXI. E o do Jameson é o pior de todos, é o mau teoriquês. A figura especular para ele é o impressionista das multidões, o Harold Blooming Dale. São opostos simétricos.

Mas não se preocupe, por dois bons & alegres motivos, veja só: a) minha crítica a ele (ou esta minha vã percepção de sonho) é, hoje, orgulhosamente minoritária; b) quando a cricrítica dele não for mais moda, ninguém lembrará que um camarada chamado Jameson esteve por aí pondo penduricalhos ordinários na venerável barba de Marx, por meio de longos ensaios cheios de vazio.

São sempre processos indolores.

Abrazo,

D.

Marcos Tamamati Martins disse...

A poesia, de fato, essa coisa de gente que atenta contra a sociedade (rs) vem resistindo nos subterrâneos, mas ao recôndito desse objeto diamante (...que delícia

abrIIIIIr di

amantes com as mãos nos teclados,

em poema



pra fazer e com um p.

tesão... (rs)




...)

,desse templo (que poucos querem violar e correr seu risco)

quase invisível oásis da realidade,
só chegam mesmo o mais sedentos



de vida.

Nossa época máquina carece um pouquinho da vida do espírito. O espírito mais real do que a carne vil que tanto pre-

ocupa o homem nessa nossa época.


Mas é...

a poesia não morre...

Como matar o que não morre?

Eis:

a isso serve o que não morre -
mostrar ao homem que dorme
aquilo que permanecesempre desperto,
o que o socorre
essa coisa,
sem-sentido-só-sabor...



Faz um mês que não escreve no seu blog, né? Achei interessante a idéia do “demônio” ter várias caras.


Parabéns pelo trabalho!

Um grande abraço!

Fábio Romeiro Gullo disse...

Grande Dirceu... rapaz, admiro d+ tua lucidez, considero-o, ao lado de Márcio-André, um dos nossos poucos e melhores pensadores da arte. Roubei uns trechos desta tua postagem (o final da postagem + teu primeiro comentário), estão lá no meu blogue. Espero q n te incomodes. Parabéns e um abraço!