sábado, 18 de dezembro de 2010

DEAN MARTIN & A BATALHA DE TRAFALGAR SQUARE

Panic on the streets of London, cantava o Morrissey


Raspando a neve das minhas botas, q afundaram nessa brancura gelada q cobriu Londres desde manhã, penso nos eventos de pouco mais de uma semana.

Hoje as ruas estavam vazias, & eu ouvia apenas a neve caindo & os estalos da minha bota no chão gelado & fofo. Mas uma semana atrás, saindo daquele ótimo pub, o Garrick Arms, q fica logo acima da National Gallery, até mesmo o frio londrino (então seco) foi esquecido no calor da Batalha de Trafalgar Square.

A Batalha de Trafalgar foi a batalha marítima, em 1805, nas guerras napoleônicas, q sagrou o Major Nelson como herói inglês (postmortem, pq morreu nela), opondo A Marinha Real Inglesa, & franceses & espanhóis; na praça, Trafalgar Square, temos o obelisco com o Major em bronze no distante topo, certamente com uma vista incomparável da cidade.

Os estudantes, q prostestam contra o aumento das anuidades, fizeram da praça um lugar de protesto. Eu não sabia, no entanto: acompanhando os protestos anteriores, me esquecera desse. E assim, saindo com a minha prima do Garrick Arms, demos de cara com uma centena de manifestantes gritando "Fuck you" em uníssono. Não eram apenas os de balaclava, ou os com pedaços de madeira na mão: era toda a centena, q se dirigia a uma barricada da polícia.

Como não íamos ficar para a festa, descemos na direção da praça; já de certa distância, no entanto, víamos uma nuvem de fumaça espessa, vinda do outro lado do prédio da National Gallery. Para termos uma visão panorâmica melhor, subimos as escadarias de St. Martin in the Fields, de onde tivemos a impressão de q ainda mais manifestantes estavam na praça, ateando fogo à enorme árvore de Natal q a prefeitura instalou junto das fontes & dos famosos leões em Trafalgar Square.

Atravessando a rua, nos aproximamos para ver se era isso mesmo, & batemos a foto acima, no meio da confusão: verdadeira confusão, pq a polícia chegou para dar fim à fogueira, & víamos a roupa dos policiais reluzindo diante dos flashes q a multidão (manifestantes & curiosos & turistas) disparava tirando fotos. Os estudantes, em massa, agindo como se fossem um só, empurraram as grades metálicas de segurança sobre a polícia, & daí as pessoas começaram a correr.

Da parte de baixo da praça, vindos da Strand, três camburões surgiram a toda velocidade, com as sirenes berrando. A multidão se dispersava pela mesma Strand (q fora fechada para o tráfego pela polícia, montando outra barricada antes da Fleet Street) & ruas adjacentes. Alguns manifestantes se misturavam habilmente ao bando de gente, ou entravam em cafés & lanchonetes.

A estação mais próxima do metrô, Embankment, ficou lotada. Caminhamos à outra, Temple, & lá pegamos o Evening Standard, por onde ficamos sabendo q os confrontos haviam começado cedo em Westminster, haviam prosseguido pelo dia, & q haviam inclusive abordado o Rolls Royce em q a Duquesa da Cornualha & o Príncipe de Gales (vulgo: Príncipe Charles) iam até um teatro em Piccadilly, onde estivéramos poucos minutos antes.

Saldo de ossos quebrados, cabeças partidas, prédios pichados & quebrados, prisões, uma foto peculiar do ataque aos Rolls Royce & um racha na votação do projeto das anuidades, dentro mesmo do partido do governo, além de notícias de todo tipo cobrindo o assunto por uma semana. Em um dos debates de TV até mesmo Michael Moore apareceu, infernizando o apresentador com provocações & incentivando os estudantes.

E hoje, o mundo imerso em neve era puro silêncio & imobilidade - fora a batalha de uns moleques tacando bolas de neve uns nos outros -, uma espécie de sonho coletivo. Numa loja ouvi o velho Dean Martin cantando "Let it snow, let it snow, let it snow": parecia um comentário estranho de propaganda de shopping para famílias de propaganda, nos EUA dos anos 50, invadindo a Inglaterra de 2010.

E agora, damn it! estou com o Dean Martin na cabeça o tempo todo repetindo, canastríssimo: "Let it snow, let it snow, let it snow".

2 comentários:

Rafael Daud disse...

Que impressionante & belo relato, Dirceu, será que o racha foi suficiente? Isso me faz pensar que o nosso sistema, tão dividido, tão atomizado, é que impede (salvo também outras diferenças culturais que não me arrisco a definir) esse tipo de protesto aqui, onde certamente seria necessário.
Mentira, a tarifa de ônibus continua subindo, a níveis insustentáveis, e no entanto... embora aí também haja atomização, uns o empregador paga, outros pagam a metade, os estudantes, no fim cada um se vê numa situação distinta e não se vê capaz de solidarizar com quem quer que seja. Getúlio previu tudo isso.
Fora a truculência da polícia, você sabe, a gente até se anima a enfrentar uns cassetetes a troco de um protesto legítimo, mas é sempre independência ou morte, aqui.
Dureza.

Dirceu Villa disse...

Não tenho opinião decisiva sobre os protestos, pq o fato é q um protesto tem muitas pessoas diferentes: alguns vão partir mesmo pra porrada, & outros estão lá para, obviamente, fazer algum tipo de afronta & ultraje, mas pra também manter a coisa dentro das circunstâncias q não exijam hospital.

E não dá pra prever o efeito q terão. Michael Moore dizia q é algo importante. Talvez seja. Mas talvez eu preferisse q houvesse uma consciência mais complexa da política em questão. Estão todos muito comprometidos, de verdade, com a questão, mas penso q falta uma visão q abarque o problema todo. No q eles obviamente se dividiriam.

Pq nesse caso das anuidades o Charles Gilmour, q é filho adotivo do Gilmour do Pink Floyd, é um ricaço nem aí pra nada, & estava lá recitando Byron & Shelley pros policiais, & escalando monumento, berrando com bandeiras, etc. Ele estava junto de caras paupérrimos, q não estavam lá pra manter seus privilégios, inexistentes.

É uma questão q une essas pessoas.

No Brasil, nos anos de chumbo, pessoas inteligentes de diversas orientações se juntaram contra a ditadura. Depois de acabada a ditadura, houve a impressão de q essas pessoas todas tinham compromisso com algo melhor, o q hoje sabemos especialmente não ser verdade. Penso q esses momentos de exaltação acabam confundindo as questões de fundo, as questões q realmente mudariam tudo.

Então é interessante ver as pessoas se movimentarem para dizer o q querem, mas não me é mais possível, como era qdo eu fui adolescente, esquecer a profunda ambigüidade de um momento como esse.

Política, enfim, seja onde for, é basicamente interesse. E não é interesse público: é o meu contra o seu. Nos raros momentos em q interesse público foi também o meu & o seu juntos, o motivo por trás disso era alguma idéia maior q as três coisas, um sentimento de transcendência, q não é lá muito humano. Resultou em coisas igualmente ambíguas.

A vida é um pouco como Shakespeare oferecia nas peças: um teatro de forças desiguais & nem sempre opostas, todas profundamente motivadas por alguma urgência. O fato de q vivemos juntos, como espécie, põe uma coisa diante da outra &, como pretendemos atingir alguma civilidade q nos prove q somos dignos além da mera circunstância de estar vivos, um arranjo sai daí. Mas quem é q vê a peça toda? só o dramaturgo q, aliás, muitos de nós acham, está ausente.

Abrazo,

D.